domingo, 12 de junho de 2011

O acre perfume de uma bela flor...




"Estou hoje num dos meus dias cinzentos, como diz nosso escritor; dia em que tudo é baço e pesado como a cinza, dia em que tudo tem a cor uniforme e nevoente dele, desse cinza em que eu às vezes sinto afundar o meu destino. Estou triste e vagamente parva, hoje, e, no entanto, estou na capital do Alentejo; aos meus ouvidos chega o ruído dos automóveis, o barulho cadenciado das patas dos cavalos de luxo, o pregão forte e sensual que é toda a alma de mulher do povo, e por cima disto tudo, a espalhar vida, luz, harmonia, sinto o sol, um sol de fogo, o sol do meu Alentejo sensual e forte como um árabe de vinte anos! Pois tudo me irrita! Que direito tem o sol para se rir hoje tanto? Donde vem o brilho que Deus pôs, como um dom do céu, nos olhos das costureirinhas que passam? Donde vem a névoa de mágoa que eu trago sempre nos meus?! Vê?...É o dia pesado, o dia em que eu sou infinitamente impertinente e má como uma velhota de oitenta anos.

Eu odeio os felizes, sabes?

Odeio-os do fundo da minha alma, tenho por eles o desprezo e o horror que se tem por um réptil que dorme sossegadamente. Eu não sou feliz, mas nem ao menos sei dizer porquê. Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não conhecia, e de repente, amiga, ao alvorecer dos meus 16 anos, compreendi muita coisa que até ali não tinha compreendido e parece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite.

Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os corações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre. Podiam hoje sentar-me num trono, canonizar-me, dar-me tudo quanto na vida representa para todos a felicidade, que eu não me sentiria mais feliz do que sou hoje. Falta-me o meu castelo cheio de sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me tudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que era... É a história da minha tristeza. História banal como quase toda a história dos tristes."

                                                                      Florbela Espanca, Cartas a Guido Battelli

segunda-feira, 25 de abril de 2011


"... Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem,  mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar:  para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro. 

Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser - se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele. 

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira  perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar. Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mes mo sentia o grande esforço de construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e agora? estarei mais livre? 

Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho por objetivo achar - e que por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê.

Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não  entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando  que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização? E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu  novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.

No entanto na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? Perder- se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não sei  o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? Ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É? Também , também.

Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não usar superficialmente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de uma verdade Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a realidade é mes mo que nada existiu?! Quem  sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes - então ela não será mais  a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada. 

A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida. 

Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria desintegração? Mas estou tão pouco preparada para entender. Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me davam  uma sensação física de incômodo, em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa. Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele. Como, pois, inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão. 

Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e  cortá-la em pedaços 
assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar delimitada - então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.

Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém..."
Fragmentos de "A Paixão Segundo G.H.", Clarice Lispector


Às vezes penso que ela escrevia pensando em mim...

domingo, 27 de março de 2011



Quando você pinta tinta, dessa tela cinza
Quando você passa doce, dessa fruta passa
Quando você entra mãe-benta, amor aos pedaços
(...)

Você me faz parecer menos só
Menos sozinho
Você me faz parecer menos pó
Menos pozinho

Quando você fala bala, no meu velho oeste
Quando você dança lança flecha, estilingue
Quando você olha molha meu olho que não crê
Quando você pousa mariposa morna, lisa
O sangue encharca a camisa 

Você me faz parecer menos só
Menos sozinho
Você me faz parecer menos pó
Menos pozinho 

Quando você diz, o que ninguém diz
Quando você quer, o que ninguém quis
Quando você ousa lousa pra que eu possa ser giz
Quando você arde, alardeia sua teia cheia de ardis
Quando você faz a minha carne triste, quase feliz.” 

(Skap, Zeca Baleiro)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Quando se torna difícil seguir em frente



Alguns momentos da nossa vida são bem difíceis de definir.
Ficamos esperando algo acontecer? repetimos alguma estratégia do passado? não fazemos nada?
A verdade é que como seres humanos estamos sempre sendo colocados à prova. Se pararmos para pensar, essa história de se afirmar como pessoa, de estabelecer uma meta e segui-la é bastante complicada, pois como participantes de uma sociedade ativa, e por ativa eu quero dizer autoritária, devemos nos concentrar em fazer o que for melhor para o bem comum e não para o nosso próprio.
Ao estudar sobre Platão aprendi que em sua República ele impede a entrada do poeta. Por quê? A poesia tende a subverter a linguagem, pois a função da literatura como arte é levar-nos além do sentido convencional daquela determinada coisa dita, o que um dos meus professores diria que é o silêncio. A prática da poesia na Antiguidade estava ligada à embriaguez, ao excesso, portanto, aquilo que de alguma forma não se preocupava com o social, não servia.
A poesia é a representação do homem passional, irracional, buscando a exacerbação de suas paixões. É essa irracionalidade que leva o homem a ter atitudes antiéticas. Por outro lado, Platão vê o teatro como bem coletivo, na medida em que através do espetáculo dramático ocorre a caterse. Catarse, etimologicamente falando, significa purgação, pirificação, podendo ser interpretada com limpeza da alma, esvaziamento das tensões humanas; seria aquela velha história: eu nem sou tão ferrado assim... a vida daquele cara ali é bem pior que a minha.
Deixando a teoria literária um pouco de lado, podemos perceber que existem certos critérios previamente determinados que nos "dizem" o que é certo ou errado e isso pode, eventualmente, causar certa confusão em nossas humildes mentes controversas. Não podemos sair por aí fazendo o que nos "dá na telha", pois as nossas atitudes influenciam positiva ou negativamente na ordem natural das coisas. Por isso, certos momentos da nossa vida são de total limbo.
Estou em um deles agora!
É difícil demais tomar decisões. Como assim você ter que fazer algo hoje, pensando nas consequências disso daqui a anos? Acho que isso está diretamente relacionado ao crescimento a que estamos fadados. Talvez seja a resistência quanto à tomada dessas atitudes que impedem algumas pessoas de amadurecer.
Não há para onde correr, meu amigo. Mais fácil para alguns, sufocante para outros, mas absolutamente necessário. Caia! Machuque-se! Levante e caia de novo... uma hora você acerta! Não será o primeiro, tampouco o último. Isso é ser humano, na verdade, foi para isso que foi feito. Ao menos, divirta-se a cada nova erguida, ria dos tombos passados, peça ajuda sempre que possível porque nem sempre lhe será dada essa oportunidade, mas principalmente, aceite! conforme-se! não exista apenas... VIVA!!! 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O velho e o moço




Gosto muito dessa música...
É incrível como existem momentos em nossas vidas que fica difícil decidir o que vamos ser ou teremos que fazer! A merda toda é que são esses momentos que determinam se deveremos ser fortes ou fracos, maduros ou imaturos, velhos ou moços...
O complicado é não querer aceitar a incumbência de determinado caso; algumas vezes também pode ser complicado acatar e seguir a "demanda", pois cada atitude nos leva a algo, e esse novo algo pode ser ajudado ou atrapalhado por aquela escolha.

"E se eu fosse o primeiro a voltar pra mudar o que eu fiz, quem então agora eu seria? Tanto faz, que o que não foi não é e eu sei que ainda vou voltar, mas eu quem será?..."
"E se eu for o primeiro a prever e poder desistir do que for dar errado? Ora, se não sou eu, quem mais vai decidir o que é bom pra mim? Dispenso a previsão..."

Dúvidas cruéis... elas nos fazem perceber que existe algo ou alguém infinitamente maior e mais eficaz com poder de comandar as nossas escolhas. Alguém já disse: "Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto". Eu não consigo parar de pensar que não tenho opções e que as que "tenho" foram previamente determinadas a mim. Sei que as minhas dúvidas e inseguranças não me levam a lugar algum, mas prefiro acreditar que esse é o melhor pra mim... não é uma desculpa para não mudar, mas a constatação de um fato: nem sempre é possível mudar ou tomar uma decisão correta quando se quer. Existe alguém que quer por mim... 

Frases...



"Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora; e pensei o quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro."
(Virgínia Wolf)


"A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original"
(Albert Einstein)

"Uma vida não questionada não merece ser vivida"
(Platão)

"A inteligência é a insolência educada" 
(Aristóteles)

"Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe" 
(Oscar Wilde)

"Devemos julgar um homem mais pelas suas perguntas que pelas respostas"
"Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las"
(Voltaire)

"Um homem que está livre da religião tem uma oportunidade melhor de viver uma vida mais normal e completa"
(Sigmund Freud)

"É de se apostar que toda ideia pública, toda convenção aceita seja uma tolice, pois se tornou conveniente à maioria"
(Edgar Allan Poe)

"Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação.''
(Charles Chaplin)

"A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais"
(Arthur Schopenhauer)